A Lei da Mãe Terra: um novo momento da luta na
Bolívia
Elaine Tavares *
O presidente boliviano, Evo Morales,
encerrou no último dia 15 de janeiro um importante ciclo de luta contra o
latifúndio no país, quando promulgou a Lei da Mãe Terra e Desenvolvimento
Integral para Bem Viver. Com ela, o Estado pretende equilibrar a posse da terra
e garantir direitos à natureza, visando em última instância que as pessoas
possam viver bem, com qualidade e em harmonia com a terra. "Temos que
trabalhar para viver bem e garantir o que necessitamos. Não mais que
isso", afirmou o presidente, para o qual o consumo desenfreado capitalista
é um dos grandes responsáveis pela destruição do planeta.
Quando Evo Morales assumiu o governo
em 2006 a Bolívia praticamente não tinha uma lei que garantisse a legalidade
das terras comunais, assim como crescia o latifúndio na região oriental,
inclusive garantido na famosa reforma de 1953, a qual permitia que uma única
propriedade pudesse ter até 50 mil hectares. Não foi sem razão que partiu de
Santa Cruz de La Sierra a primeira grande onda de protesto contra o governo de
Morales, ainda em 2008, quando a Bolívia chegou quase a uma convulsão social
patrocinada pelos fazendeiros da região. Eles não queriam a aprovação, na
Constituição, do limite de até 5 mil hectares propriedade. Naqueles dias houve
um plebiscito sobre o tema e mais de 80% do país votou favorável a diminuição
do tamanho da propriedade. Era uma primeira queda de braço vencida.
Agora, essa nova legislação, nascida
do debate permanente com a organizações sociais, garante a proteção da Mãe
Terra, assim como recupera e fortalece os saberes locais e conhecimentos
ancestrais. O capítulo I trata dos objetivos e princípios. No artigo primeiro
fica estabelecido que é dever do Estado Plurinacional e da sociedade garantir
os direitos da Terra. No artigo segundo estão definidos os princípios que regem
a lei: harmonia (a ação humana deve equilibrar-se com os ciclos e processo da
terra), bem coletivo (os interesses sociais e coletivos são mais importantes
que os interesses individuais), garantia de recuperação da terra (deve-se dar
tempo para que a terra se recupere e se adapte às perturbações, regenerando-se
sem mudar suas características), respeito, não mercantilização e
interculturalidade.
O capítulo II dá conta da definição e
do caráter da Mãe Terra. Estabelece que ela é um sistema vivente dinâmico
formado pela comunidade invisível de todos os sistemas de vida e dos seres
vivos inter-relacionados, interdependentes e complementares que compartilhar um
destino comum. Define ainda que os sistemas de vida são as plantas, animais,
micro organismos e outros seres onde inter atuam comunidades humanas com suas
práticas produtivas e culturais com suas respectivas cosmovisões de nações,
indígenas e afrodescendentes. Como caráter jurídico a Mãe Terra aparece como
sujeito coletivo de interesse público e a população boliviana tem o dever de
zelar pelos seus direitos.
No Capítulo III estão listados os
direitos garantidos à Terra: o direito à vida, com a manutenção do seus sistema
e dos processos naturais; o direitos à diversidade garantindo que nada seja
alterado geneticamente ou modificado de maneira artificial; o direito à água,
garantindo a preservação, a quantidade e a qualidade; direito ao ar limpo, ao
equilíbrio, à restauração e a viver livre de contaminação. Aqui, nesse capítulo
define-se claramente a proibição aos transgênicos e o combate à mineração que
tanta destruição ambiental vem causando na América Latina.
O capítulo IV estabelece as
obrigações do Estado e da sociedade e ali estão definidas a necessidade de
desenvolvimento de políticas públicas para a proteção da natureza, para o
consumo equilibrado, contra a mercantilização, pela soberania energética, pelo
desenvolvimento de energia limpa. Também estabelece os deveres das pessoas no
cuidado com a terra, na promoção da harmonia, na participação da construção das
políticas, nas práticas e hábitos que se harmonizem com a proteção, na denúncia
de tudo que atentar contra os direitos da terra. Finalmente, o artigo final
(10) cria a Defensoria da Mãe Terra que tem por missão velar a vigiar pelo
cumprimento da lei.
Mas, o que é considerado um avanço
tremendo para a maioria da população não está sendo bem visto pelos grandes
proprietários. Com a lei, que aparece de forma singela, fica comprometido todo
um projeto que as grandes empresas transnacionais tem para o país, dono de
riquezas minerais imensas. Como a elite boliviana tem ligação visceral com esse
projeto que se projeta desde fora, a resposta promete ser forte. A Lei da Mãe
Terra acaba se contrapondo à mineração, aos mega projetos energéticos, aos
transgênicos e muitos de seus artigos necessitam leis complementares. Essa será
uma nova batalha a ser travada.
O presidente da Associação Nacional
de Produtores de Oleaginosas e Trigo, Demetrio Pérez, deu declarações nos
jornais afirmando que proibir os transgênicos é colocar travas no
desenvolvimento produtivo. E já avisou que no processo de discussão das leis
complementares eles estarão atuando. Também o presidente da Confederação de
Criadores de Gado da Bolívia, Mario Hurtado, acredita que a nova lei trará
muitas incertezas para os proprietários e eles haverão de agir.
De qualquer forma, ainda que venham
novas lutas, a Bolívia deu um passo importante em nível mundial ao reconhecer a
condição "sagrada" da terra, recuperando elementos ancestrais da
cultura andina que nunca deixaram de existir, embora estivessem escondidos sob
o domínio colonial e depois nos sucessivos governos de marionetes. A terra
vista como "Pachamama", não na sua percepção folclórica ou
anacrônica, mas como um sistema vivo, no qual o ser humano é só mais um
elemento. Garantir o equilíbrio desse sistema passa a ser fundamental também
para a sobrevivência da espécie.
A lei sobre o direito da Terra não
está sozinha dentro do complexo sistema de "justiça climática" que
está em voga hoje no país. Também existe a Lei da Revolução Produtiva (com
amplo apoio ao pequeno e médio produtor), o processo de distribuição de
sementes de qualidade, o seguro agrícola para ajudar em casos de desastres
naturais e o Observatório Ambiental. Cada uma dessas iniciativas formam um
sistema para garantir a segurança alimentar da população assim como a proteção
da terra.
A questão ambiental, que o sistema
capitalista tenta impor ao mundo como um problema causado sempre pelo
"outro", se resolve assim mesmo. Cada microrregião do planeta pode
cuidar de si, garantindo a proteção à terra e tornando possível que a sociedade
assuma o definitivo controle sobre seu ambiente, atuando de maneira protagônica
no processo e não apenas como quem denuncia. Agora, na Bolívia, esse é o
desafio. Cada pessoa tem o direito e o dever de atuar na proteção e na
formulação das políticas. E, além das leis que asseguram a proteção à Pachamama
ainda poderão contar com o Fundo Plurinacional da Mãe Terra, formado de verbas
públicas e privadas, para que seja possível administrar essa nova foram de
interagir com a natureza.
Uma nova fase da luta pelo equilíbrio
da vida começa agora na Bolívia. Não vai ser coisa fácil e precisa de tempo
para se fortalecer e vingar.
* Elaine Tavares é jornalista.
* Elaine Tavares é jornalista.
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