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A agricultura como forma de mitigação dos gases de efeito estufa é tema
do momento nas discussões internacionais sobre mudanças climáticas e nas
negociações no âmbito da UNFCCC (sigla em inglês para Convenção Marco das
Nações Unidas sobre Mudança Climática).
Desde que as negociações sobre o clima foram iniciadas, a adaptação aos
seus impactos recebeu pouca atenção. E a temática agrícola surgiu primeiro,
justamente, neste tema das negociações. Uma explicação óbvia para a ausência de
foco na adaptação aos problemas gerados pelo aquecimento global é que, para os
países do Sul se adaptarem, os países do Norte deveriam financiar programas
reconhecendo as “responsabilidades comuns porém diferenciadas”. É o contrário
do que ocorre com a “prima” da adaptação, a mitigação, ou seja, a redução de
emissões. Isso porque os países do Norte teriam que gastar dinheiro em
adaptação ao invés de criarem oportunidades de lucro com as propostas para
combater o problema climático, em sua maioria, vinculadas à mitigação – e
compostas por soluções como o mercado de carbono.
A criação, em 2005, do Programa de Trabalho de Nairobi sobre Impactos,
Vulnerabilidade e Adaptação às Mudanças Climáticas e Seus
resultados, apresentados em 2007, na COP 13, fizeram a questão da adaptação
aparecer com um pouco mais de força, sendo incluída no Plano de Ação de Bali.
Através do Programa, pela primeira vez o tema agricultura foi incorporado às
negociações climáticas.
Unindo útil e agradável
A receita apresentada agora é reunir, inteligentemente, a
mitigação - onde entra o dinheiro -, com a adaptação e a vulnerabilidade - onde
será necessário gastar. Mitigar é fundamental para manter o aquecimento global
a níveis seguros. A agricultura tem um papel muito importante nisso já que
contribui diretamente com 11 a 15% das emissões globais de gases do efeito
estufa (GEE) devido ao uso de fertilizantes, maquinaria pesada baseada na
utilização de combustíveis fósseis e pelas emissões causadas pelo gado. Além de
sua contribuição nas mudanças de uso do solo e no desmatamento, que
contabilizam de 15 a 18% das emissões globais.
A “receita inteligente” posta em pauta pelos países do Norte busca unir
conceitos como mitigação e adaptação, a outros, como resiliência e prevenção. E
em princípio, não há nenhum problema com a união dos conceitos, pelo contrário.
Uma visão holística sobre a questão, entendendo a mitigação, a resiliência e a
prevenção como parte da adaptação é importante para que as mudanças climáticas
não sejam percebidas como fato consumado, sem outra saída a não ser adaptar-se.
No entanto, é na instrumentalização das propostas mencionadas que está o
perigo.
Não devemos nos esquecer que a maioria das soluções propostas no marco
das UNFCCC segue tendo o mercado como primazia. Assim, como pensam financiar a
adaptação da agricultura? Como incluir a agricultura aos mecanismos financeiros
que prevêem a compensação? Como incluí-la nas negociações como tema importante?
É aí que entra a chamada “Agricultura climaticamente inteligente” (em inglês, climate
smart agriculture) como proposta.
Agricultura e clima sim. Mercado de carbono, não
A Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO),
com apoio do Banco Mundial, publicou no final de 2010 um informe sobre o tema.
Apesar de não estar clara no informe uma definição formal para climate
smart agriculture, ela é descrita como uma agricultura resistente à mudança
climática com vista a garantir a segurança alimentar, promovendo que os solos e
os cultivos sejam menos vulneráveis a secas, chuvas ou ao aumento geral da
temperatura. Argumentam então que a agricultura pode ser utilizada para
absorver o CO2 da atmosfera, por seu potencial de compensar carbono. E propõem
que sejam oferecidos aos produtores locais financiamento para tornar seu solo
mais resistente e produtivo, ao mesmo tempo em que possa ser utilizado para
capturar carbono e transformá-lo em créditos a serem vendidos a empresas
contaminantes – não apenas da agricultura industrial, mas também em outros
setores a exemplo do energético, como já acontece com os créditos vendidos por
meio do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) para compensar as emissões dos
países desenvolvidos.
Vale à pena perguntar-se: se a agricultura é um dos setores que mais
emitem GEE, antes de pensar em qualquer possibilidade de capturar carbono não é
o caso de aprofundar as medidas para reduzir as emissões do setor e mudar os
sistemas de produção agrícola para aumentar a segurança e soberania alimentar?
Apesar de muitos exemplos de boas iniciativas e práticas como a
agroecologia e a agrofloresta já terem sido mostrados, parece que a ideia
central não é impulsionar estes modelos, mas converter tudo em “carbonização da
discussão climática”. Ou, pior, incluir nos sistemas da agricultura familiar e
camponesa os cálculos de carbono e sua esfera no mercado global. Um exemplo
disso já vem acontecendo na própria proposta do climate-smart agriculture ao
utilizar as práticas agroecológicas em relação aos abonos verdes, a utilização
mais eficiente da água e os cuidados com o solo como parte da chamada
intensificação sustentável com contabilização da redução de emissões.
A coisa se complica mais ao entrarmos nos mecanismos financeiros
propostos: passam pelas conhecidas parcerias público-privadas, fontes
inovadoras de financiamento como o mercado de carbono, emissão de títulos,
permissões de emissões nos esquemas decap and trade (limite e comércio)
e subsídios públicos. Também suscitam a possibilidade de um mercado global de
créditos de carbono provenientes da mitigação agrícola e da criação de seguros
e resseguros agrícolas que combinariam ações de risco sobre as potenciais
perdas devido às catástrofes climáticas.
Apesar de tantas saídas pela via do mercado, a iniciativa da agricultura
inteligente critica o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL). Este mecanismo
oficializou o mercado de carbono nos países membros do Protocolo de Quioto. Ele
não inclui o sequestro de carbono do solo, que é a principal resposta da
proposta agricultura inteligente para promover a mitigação e nem mesmo fala da agricultura como
uma categoria. Entre os argumentos para não incluir o MDL como fonte de
financiamento está a constatação de que o mecanismo não seria efetivo para uma
transformação da economia dos países em desenvolvimento e de que ele impõe
altos custos de transição. Apesar de tais conclusões, a proposta insiste em
argumentos típicos do mercado de carbono, a exemplo da afirmação de que o
financiamento agrícola poderia aumentar até cinco vezes seu valor se estivesse
vinculado a este mercado. Assim, as saídas propostas passam pelo pagamento por
serviços ambientais e pelo sequestro de carbono do solo – visto por alguns
defensores do pacote da economia verde como “nova revolução verde” já que,
supostamente, aumentaria a produtividade.
É fundamental fortalecer e aprofundar estes argumentos na agenda de
organizações e movimentos sociais. A agricultura deve sim entrar com mais força
nas negociações de clima, mas, antes disso, é fundamental debater de que
maneira a agricultura entra no debate e quais os perigos das propostas
“climaticamente inteligentes”.
Resistir que a agricultura sirva como novo ouro verde para as falsas
soluções à crise climática é primordial para que não se promovam novos
mecanismos que terão forte impacto no modo de vida dos agricultores e
agriculturas familiares e camponeses e camponesas e em seus territórios. Além
disso, suas verdadeiras soluções não devem ser usurpadas e transformadas em
novos mercados de carbono que fortaleçam as especulações e o livre jogo do
mercado financeiro, nem pretendam compensar a sociedade global dos grandes
contaminadores do mundo.
Fonte: http://vozesdoclimabrasil.org/2012/08/27/agricultura-climaticamente-inteligente-o-que-ha-por-tras/
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