“Não há mais lugar seguro
na Síria. O futuro dos cristãos na Síria não está ameaçado por muçulmanos, mas
pelo caos e pela infiltração de grupos incontrolavelmente fanáticos e
fundamentalistas.” (Patriarca Gregorios III
Latham, da Igreja Católica Grega Melquita.).
O
conflito na Síria entra no seu quinto ano, sem solução à vista, com uma macabra
contagem de 193 mil mortos e mais de 3,5 milhões de refugiados. Não obstante,
apesar de ser considerado pelas potências ocidentais e pelos reinos do Golfo
Pérsico como um obstáculo a uma solução política para o impasse, o presidente
Bashar al-Assad conta com o apoio ostensivo ou silencioso da grande maioria da
população síria, em especial, das minorias religiosas ameaçadas pelos
fundamentalistas islâmicos que constituem hoje o grosso das forças rebeladas
contra o regime. Entre elas, o drama dos cristãos sírios é emblemático da
devastação que se abateu sobre o país.
Anteriormente
formando cerca de 10% dos 22 milhões de habitantes do país, e vivendo em
harmonia com os demais grupos étnico-religiosos, os cristãos sírios entraram na
alça de mira dos fanáticos islamistas que substituíram a chamada “oposição
moderada” na insurreição armada contra Damasco. Como escrevemos, na edição de
25 de julho de 2012 desta Resenha:
Nesse contexto explosivo, paira sobre a Síria a séria ameaça de
uma violenta perseguição às minorias étnico-religiosas que compoem a população
do país. Com todos os seus problemas, o regime da família Assad tem sido capaz
de manter um Estado nacional constituído por um amálgama de uma maioria de
muçulmanos sunitas (74% da população, entre árabes, turcos e curdos), minorias
muçulmanas de alauítas (que controla o regime), xiitas e drusos (16% da
população) e 10% de cristãos. Por todas as razões, essas minorias,
principalmente a cristã, temem que uma eventual queda do regime de Assad
resulte na ascensão de um governo de maioria sunita, agrupado ao redor da
Irmandade Muçulmana, que intensifique as perseguições sectárias que já se
manifestam em meio à insurgência contra o governo.
A
Irmandade Muçulmana, cuja ponta de lança foi o seu efêmero governo no Egito,
saiu de cena, mas, em lugar dela, se impôs o incomparavelmente mais violento
Estado Islâmico (EI), que domina um vasto território dividido entre a Síria e o
Iraque e ameaça aglutinar grupos islamistas em vários países, especialmente, no
Norte da África.
A
gravidade da ameaça levou até mesmo o Vaticano a apoiar o uso da força militar
contra o EI, como afirmou na semana passada o enviado da Santa Sé às Nações
Unidas, arcebispo Silvano Tomasi. “Devemos deter esse verdadeiro genocídio. De
outro modo, no futuro, estaremos lamentando não ter feito nada, ter permitido
que ocorresse uma tragédia tão grande”, disse ele.
O
próprio papa Francisco tem denunciado a “brutalidade intolerável” praticada
pelo EI contra os cristãos e outras minorias religiosas, no Iraque e na Síria,
e que uma resposta militar contra o grupo é “lícita” (RT, 15/03/2015).
Em uma
pouco comentada visita ao Brasil, onde veio relatar aos católicos do País a
perseguição movida aos cristãos sírios, o arcebispo de Homs, Jean-Abdo Arbach,
descreveu o avanço do EI como “o princípio da Terceira Guerra Mundial”. Segundo
ele, antes da guerra, a convivência entre muçulmanos e cristãos na Síria “era
pacífica, mais livre, havia diálogo, respeito. Mas a Primavera Árabe mudou os
limites e pôs medo nos cristãos”.
Em
entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo (15/03/2015), Arbach
confirmou o papel aglutinador do governo de Assad:
Antes da guerra, durante a guerra e até agora, o governo sempre
ajudou os cristãos e todas as pessoas, sem exceção, até muçulmanos sunitas [a
família Assad e a elite síria pertencem, majoritariamente, à minoria xiita
alauíta - n.e.]. É um governo para todos, isso sim. Não podemos dizer que o
governo se alia com um ou com outro.
Em um
artigo publicado no sítio especializado em assuntos do Oriente Médio Al-Monitor
(23/03/2015), o jornalista Edward Dark, que vive na cidade de Aleppo, dividida
entre as forças do governo e os insurgentes, faz um dramático relato da
situação, ao reproduzir uma conversa com um líder cristão do bairro de Siryan
Adeemeh, onde cristãos, muçulmanos e curdos se misturam, mantendo relações que
costumavam ser “joviais e amistosas”, antes do conflito.
Segundo
ele, o bairro se situa a menos de 2 quilômetros de áreas controladas pelos
insurgentes e tem sido constantemente castigado com fogo de armas leves e
artilharia, o mais recente dos quais, em fevereiro, matou várias pessoas.
O seu
entrevistado foi Abu Fadi, descrito como “o prefeito de fato desse bairro” e
“uma figura muito querida e respeitada pela sua comunidade cristã e pelas
demais”. A seguir, reproduzimos os trechos mais relevante do artigo, que falam
por si próprios:
Eu perguntei a Abu Fadi sobre o impacto do conflito na sua
comunidade e o sentimento prevalecente. ‘Tudo mudou’, respondeu ele, em um tom
mais sombrio. ‘Antes da guerra, nós [os cristãos de Aleppo - D.E.] estávamos
seguros como uma comunidade, mas agora vivemos com medo pela continuidade da
nossa existência na Síria. Nunca havia sido assim, que alguém se lembrasse.
Estamos nos sentido perseguidos no nosso próprio país.
‘Então, muitos dos nossos
jovens partiram. Agora, sobraram apenas crianças e pessoas velhas, mas quem
pode culpá-los? Veja a situação aqui, as condições são terríveis. É perigoso.
Há bombas e balas caindo em toda parte, não há trabalho nem dinheiro e tudo é
muito caro. Isso é uma vida adequada e digna? Os jovens têm ambições, enquanto
nós estamos grudados na nossa terra e resignados aos nossos destinos. Eles
querem ir para a Europa, começar uma vida nova e ter futuros melhores. A nossa
comunidade está morrendo. Se a guerra não a matar, a emigração fará isso.’
Eu lhe perguntei como se sentia sobre os campos em luta na
Síria, quem ele apoiava e por que. Ele respondeu: ‘Não há dúvida alguma sobre
quem apoiamos: o governo, é claro. É a única força que está nos protegendo dos
jihadistas e extremistas.’
‘Por que vocês se sentem assim? Não existem grupos armados e uma
oposição que não sejam extremistas e também representam outros sírios e seus
interesses legítimos?’, perguntou Al-Monitor.
‘Não, não há mais’, disse ele. ‘Veja, no início, alguns deram
boas vindas aos protestos, porque sentiam que poderiam fazer com que o governo
resolvesse os problemas, como a corrupção e outros assuntos e reformas
importantes, como se fosse um despertador que o acordasse. Mas, logo, vimos que
não foi o que aconteceu. Eles só queriam tomar o poder a qualquer custo; eles
destruirão a Síria para isso. Logo, eles mostraram as suas verdadeiras caras, o
extremismo religioso que estavam escondendo. Todo mundo que tomou armas contra
o Estado está errado.’
‘Isso é só o Estado Islâmico, a Al-Qaida e os combatentes
estrangeiros? Muitos grupos são locais’, disse Al-Monitor.
‘Você quer dizer os locais, que disparam seus foguetes em nossas
casas?’, ele riu, sarcasticamente. ‘Que diferença isso faz? Olhe, nós agora
somos alvejados como uma comunidade religiosa; isto está muito claro para nós.
Eles querem se livrar de nós, expulsar-nos das nossas terras, que habitamos há
séculos. Eles destruíram igrejas. Olhe para Kassab e Maaloula, você precisa de
mais provas?’
‘Nesse caso , por que vocês não pegam
em armas para se defender, como os assírios fizeram em Hasakah?’
‘É um caso diferente’, respondeu. ‘Eles estão lutando contra o
EI, então, há uma aceitação de que eles formem milícias. Eles conseguem até
mesmo apoio internacional para fazer isso. Aqui em Aleppo, é diferente. Se
quisermos lutar, temos que nos juntar às formações do governo e, então, somos
chamados de bandidos shabiha [milícia paramilitar pró-governo - n.e.]. Tudo tem
a ver com a política global. Mas muitos se juntaram, de qualquer modo.’
‘O que você acha que o futuro reserva para a sua comunidade?’,
perguntou Al-Monitor.
‘Não estamos otimistas. Mesmo que a guerra acabe, as cicatrizes
não serão curada e a confiança não voltará. A vida não será normal outra vez, e
aqueles que partiram jamais retornarão. Eu só espero morrer e ser enterrado na
minha terra, e não ser expulso. Isso é tudo o que eu quero, agora.’
Enquanto me despedia deles, não pude deixar de pensar que, a
despeito do que Abu Fadi havia dito sobre não ter mais medo de se manifestar,
isto não era propriamente o caso, pelo menos, se você estiver criticando o
governo em público. No entanto, era bastante claro que as pessoas daqui sentem,
genuinamente, que o regime é a sua última esperança.
Fonte: Al-Monitor.
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